quinta-feira, janeiro 31, 2013

Regressar à casa de partida


No início de 2011, o Governo procurava uma solução que garantisse o financiamento do Estado sem pedido de resgate. O PEC IV era isso mesmo: Portugal ia aos mercados, mas fazia-o de modo assistido, e como contrapartida aplicava um conjunto de medidas de austeridade. A solução era menos má do que o que veio a seguir. Com a assinatura do memorando de entendimento, a capacidade negocial portuguesa ficou muito fragilizada e passámos a ser governados por soluções impostas desde fora, devidamente apoiadas por quem em Portugal com elas sempre sonhou.
Olhando retrospectivamente, o PEC IV não era politicamente sustentável. Teria funcionado como balão de oxigénio para Sócrates, mas pouco mais. Sem condições para continuar a governar em minoria e com a Europa como constrangimento negativo, acabaríamos por ser resgatados. Dois anos passados, não deixa de ser paradoxal que regressemos aos mercados em condições próximas das do PEC IV, mas numa situação económica e social bem mais degradada.
Há contudo uma diferença significativa. O financiamento assistido do PEC IV era um exclusivo português; hoje, todos os países em dificuldade estão, de facto, a ser financiados num registo semelhante. Até aqui, era-nos dito que se os países encetassem reformas estruturais e os Governos aplicassem sem piedade medidas de austeridade expansionista, os mercados retribuiriam o esforço, voltando a financiar a dívida soberana. Como sabemos, nem as agências de rating, nem os mercados confiaram. Bem pelo contrário.
O que aconteceu é que, em lugar de serem os mercados a acreditarem na estratégia seguida, foram os próprios proponentes a fazê-lo, preenchendo as lacunas institucionais que existiam. E se tal aconteceu é por o caminho seguido até aqui ter falhado e não por ter sido um sucesso. Se, por absurdo, se acredita que este regresso aos mercados é resultado das políticas de austeridade, então é porque se continua a não compreender a natureza da crise da dívida soberana.
Alguma coisa mudou na Europa e, ainda que de forma oficiosa, o papel do BCE alterou-se, empurrado pela degradação da situação de Espanha e Itália. Com um inaceitável legado de destruição económica e de barbárie social (é disso que falamos quando se assiste à destruição em massa de postos de trabalho), a Europa criou as condições de viabilidade financeira de curto prazo para a sua própria estratégia.
Regressámos à casa de partida, mas acompanhados por uma enorme alteração nos equilíbrios de poder, que tem um efeito positivo na capacidade de financiamento dos países. Antes, a condicionalidade era negociada com a Troika (FMI, Comissão e BCE), no futuro passará a depender, cada vez mais, do BCE. Um novo monarca absoluto na política europeia, que centraliza as decisões e imporá condições, passando a deter o monopólio da violência económica e social. Que a estrutura de poder se altere de forma tão profunda e ninguém cuide de garantir níveis mínimos de legitimidade é elucidativo do desvario político que impera na Europa.

publicado no Expresso de 26 de Janeiro